4. A Reunião

193 9 4
                                    

Quem vê Caroline sentada no sofá da sala de estar, com a cabeça repousada no colo da mãe, assistindo o desenho animado “Bicudo o Lobisomem”, não desconfia que esta garotinha bonita e sorridente seja aquele bebê que, há uma década, nascia neste mesmo casarão de fazenda, numa fria madrugada coroada por uivos e celebrações.

Ela tem pleno conhecimento de sua condição, e espera ansiosamente o momento de sua primeira transformação. Segundo Rui, seu pai, isso só será possível quando a fisiologia lupina fizer parte de seu frágil corpo humano.

No ano passado, em seu aniversário de nove anos, Caroline perguntou ao pai quando ela saberia que seu corpo estaria pronto para a metamorfose que ela tanto deseja. Também falou sobre seu grande temor, o de simplesmente não ser capaz de se tornar uma mulher-lobo. “Você será capaz, posso afirmar”, disse ele, “pois foi sangue de lobo que provei ao te segurar entre minhas mãos, nos seus primeiros instantes neste mundo.”

Isso a acalmou, pois seu pai é a pessoa em quem mais confia, e a que mais respeita. Ela apenas ficou intrigada com a resposta que veio em seguida, mais nebulosa do que gostaria: “Estará pronta quando um novo sentido sobrepujar todos os já existentes.”

Rui Lopo recebe, na varanda de sua casa, três amigos íntimos. A primeira a chegar foi a matriarca da família Pastrana, Júlia. Logo em seguida, André e Lucinda Veiga saúdam os presentes e se acomodam em cadeiras ao redor da mesa redonda, sobre a qual repousa uma jarra de suco de maracujá gelado, copos e uma carta.

O início de tarde está agradável e quente, e o suco é muito bem recebido por todos. Já a carta não é tão bem-vinda, e seu conteúdo é o motivo desta reunião. Trata-se de uma convocação, para uma conversa com Pernambuco Nogueira, conhecido político da cidade de Joanópolis, e com o delegado Adão Fuller, na delegacia da cidade.

As três famílias são formadas por homens-lobo, já bem instaladas em pontos isolados da cidade. Os Lopo e os Veiga são originários de Portugal, e os Pastrana do México. Quando, cada um a seu tempo, optaram por fincar raízes aqui, procuraram “domesticar” sua fúria ancestral, de maneira a não prejudicar a população local, convivendo pacificamente. Quando se transformam, sempre o fazem em áreas afastadas, em meio a matas densas e montes de difícil acesso.

Possuem criações de animais para aplacar sua fome, mantém plantações e inclusive têm alguns de seus membros trabalhando na cidade, no comércio e no turismo. Aprenderam a ser reservados, a respeitar o povo e a amar Joanópolis.

A carta, apesar da escrita rebuscada e da cordialidade das palavras, transparece discretamente certo tom de ameaça, algo do tipo “nós sabemos o que vocês são”. O receio de perder tudo o que têm conquistado há gerações alimenta a discussão do quarteto, definindo estratégias, formulando defesas e até levando em consideração a possibilidade de propor algum tipo de acordo. Eles querem a todo custo evitar um conflito, que levaria a um banho de sangue e, consequentemente, a um exílio das famílias.

Chegada a hora de partir para a reunião, entram no carro Rui e sua esposa Aline, acompanhados de Júlia, já cientes de como proceder. A estratégia adotada foi a da cautela, e até mesmo da negação, caso não tenham provas concretas de sua natureza. Da janela do carro, Rui chama seu filho Rômulo e pede para que cuide de sua irmã, porque seu irmão gêmeo, Remo, está fazendo compras na cidade.

O carro parte, e um temor silencioso flutua sobre o trio, durante todo o trajeto até a delegacia. Todos têm um forte sentimento de que algo intenso acontecerá a todos hoje, e não sabem dizer se essa sensação é boa ou ruim. Resta agora encarar a situação com toda a coragem com a qual foram agraciados, e arcar com as consequências dela advindas.

Chegando à delegacia, eles foram encaminhados a uma sala de reunião nos fundos. Os três acomodaram-se em cadeiras estofadas, em frente a Adão e Nogueira, ao redor de uma grande mesa oval. Ás costas do delegado, uma ampla janela com as persianas levantadas deixa a sala às vistas de um grande contingente de policiais que por ali circula, com ares de despreocupação, mas que sempre tem alguém vigiando o interior do recinto, para o caso de alguma emergência. Uma clara demonstração de poder, visando a intimidação dos três. Pernambuco Nogueira inicia a conversa:

Fúria Lupina - BrasilOnde as histórias ganham vida. Descobre agora