Prólogo

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       Winda nunca imaginou que sairia de seu país natal, Moçambique, para estudar na maior academia de ballet do mundo. A Bolshoi é um sonho distante para quase todas as bailarinas, e com Winda não havia sido diferente. Tinha apenas dezessete anos, e a ideia de ir para Russia e ser orientada pela profissional mais prestigiada dos últimos anos, embora a deixasse deslumbrada, parecia algo impossível. Até fazer a audição que transformou sua vida. Sabia que seria difícil ir para Russia sem saber falar o idioma, conhecendo apenas o básico de inglês, vindo de uma cultura diferente e de um país onde até mesmo o clima era outro. Mas lá estava ela.
      No entanto, passava de dez da noite, e Winda ainda não havia voltado para o dormitório porque precisava aperfeiçoar seu fouette. As audições para o repertório de "O Lago dos Cisnes" estavam cada vez mais próximas, e sua orientadora, Margot Jones, enxergou um grande potencial na garota. É sempre uma grande honra ser reconhecida por uma pessoa admirada, entretanto, Winda não podia negar que Margot Jones parecia ser menos severa nas fotos e entrevistas que dava. Mesmo aos trinta anos, a mulher exalava uma delicadeza única até na forma de andar.
      Enquanto Winda girava pelo que deveria ser a milésima vez no dia, Margot a cercava, avaliando a garota dos pés á cabeça com uma leve expressão de julgamento. Winda finalmente parou, tentando disfarçar o cansaço. A professora pressionou a língua contra a parte interna da bochecha, antes de finalmente falar.
      — Fouette. – ela pronunciou. De novo.
      Winda respirou fundo e se posicionou. Conseguiu dar o primeiro giro antes que suas pernas vacilassem e fizessem com que ela fosse de encontro ao chão.
      — Winda! – Margot exclamou enquanto se apoiava nos joelhos para verificar a situação da garota, que agora, definitivamente não parecia estar bem.
      — Estou bem. – Winda respondeu, embora sua visão estivesse girando tanto quanto quando estava fazendo fouette – Desculpe. – a garota disse, criando coragem para erguer o olhar.
      Margot ainda tinha aquele olhar severo, mas algo se suavizou em seu rosto. A mulher estalou a língua no céu da boca.
      — Você comeu, Winda? – perguntou de supetão, fazendo a adolescente piscar algumas vezes.
      — Apenas almocei, senhora Jones. – respondeu.
      Não. Winda não comia nada desde o café da manhã. Mas parecia que a resposta não havia convencido a professora, que apenas suspirou.
      — Então, vamos comer juntas. Eu pago. – a mulher se levantou, estendendo a mão para a garota, que parecia um pouco melhor – O que quer comer? – indagou. Winda pensou em recusar a proposta, mas seu estômago barulhento a entregou.
      — Bem, talvez uma salada? – Margot fez uma careta ao ouvir a resposta.
      — Não prefere um hamburguer? – questionou. Winda se perguntou se aquilo não era uma armadilha – Você não come faz muito tempo, e não faz mal comer porcaria de vez em quando. – deu de ombros – Além disso, você precisará de forças para dançar se quiser mesmo ser a Odette.
      Winda engoliu em seco, pensativa. Não comia bem há semanas, passava quase o dia inteiro apenas ensaiando e pensando que precisava ser perfeita.
      — Um hamburguer seria bom. – admitiu, fazendo a professora disfarçar um sorriso enquanto pedia a comida no celular – Agora – se virou repentinamente para a garota, que parecia timída demais para dizer algo –, enquanto a comida não chega, por que não me conta o que tanto te aflige? – a mulher questionou, se sentando no chão de mármore e batendo a palma da mão no piso, como um sinal para a garota fazer o mesmo.
      Winda se sentou de frente para a professora, ainda insegura. Margot parecia um pouco menos severa agora, e mais com a pessoa que a menina estava acostumada a ver nas entrevistas e nos repertórios. Ela foi a primeira brasileira a representar Odette no Teatro Bolshoi. E Winda gostaria de ser a primeira moçambicana.
      — Sinto que não consigo transmitir as emoções de Odette. – admitiu, tirando as sapatilhas para massagear os pés que doiam. Margot prestava atenção – Acho que... não sei. Não consigo entender todo esse amor, sabe? Não consigo entender como alguém morreria por amor a outra pessoa, porque sinto que eu nunca faria isso. Essa coisa do sacrifício do Siegfried no quarto ato... sim, é muito bonito, mas é tão distante da realidade que sinto que não sou capaz de transmitir todo esse sentimento. – a garota tentou explicar, embora se sentisse tola pela forma como usou as palavras.
      — Acho que a arte é uma metáfora para a vida. – Margot pronunciou – Acredito que... há muitas formas de sacrifícios por amor, não apenas a de Siegfried. – a mulher abriu um sorriso sincero – Você lembra alguém que eu conheci há muito tempo atrás. O começo dela no ballet foi um pouco parecido com o seu, exceto que... – Margot parou de falar repentinamente, entortanto os lábios – Ah, deixe para lá. Não quero tomar seu tempo. – disse abanando as mãos. O que Winda não sabia, era que aquilo sim era uma armadilha.
      — Por favor, me conte! – a garota pediu, curiosa – O que aconteceu com essa garota? – ela franziu a testa.
      — Bem, digamos que... ela se apaixonou. – Margot murmurou – Ela também se mudou para outro país, assim como você. E ela também era bailarina, assim como você. A única diferença, é que o caminho dela foi cheio de sacrifícios, e por isso, ela teve mais tempo que você para aperfeiçoar o fouette. Ela teve que ser a Odette na marra!
      — Ela fez a Odette? – os olhos de Winda brilharam quando Margot assentiu em confirmação.
      — E ela teve o Siegfried dela. – a professora adicionou com um sorriso no rosto – Mas a história dessa garota é um pouco diferente do que estamos acostumadas a ver nos ballets de repertórios, sabe? Os homens não costumavam brigar com espadas. O nome dessa Odette era, na verdade, Agnes. E o Siegfried dela, se chamava Amery. A maldição dela era um pouco diferente. Foi assim...

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⏰ Última atualização: May 31, 2023 ⏰

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