- Bom, eu estava lá quando tudo aconteceu. - Raoni ficou com uma cara de espanto e ao mesmo tempo intrigado com o que viria a seguir.
Há muito tempo, eu fui convidada a presenciar uma conversa entre dois espíritos que trouxeram ao nosso país uma grande árvore, essa árvore que muitos povos conhecem como árvore da vida, foi trazida ao Brasil, para que aqui florescesse e gerasse um novo mundo, melhor e mais pacífico.
Para que não houvessem erros e essa árvore não fosse arrancada, foi dado a algumas pessoas, dons para que essas pudessem ver entre os mundos e ao renascerem continuarem tendo acesso às informações do passado, para que aprendessem com ele e pudessem evitar erros no futuro.
Contudo, não seria permitido que essas pessoas atrapalhassem o livre arbítrio das outras pessoas, o lema era o "arbítrio é seu, seja livre". Além disso, teríamos uma intuição mais forte e que pudesse nos ajudar a ter melhores decisões sobre os rumos da humanidade.
O que não nos foi dito no início era de que existia um mundo imenso e que haveriam pessoas vivendo em outros lugares do mundo. Algo que geraria choque entre os livres arbítrios de formas tão intensas. Claro, também não perguntamos e não tínhamos acesso a essa informação, pois sequer imaginávamos isso.
Minha primeira vida foi em uma aldeia com não muitas pessoas, tudo aconteceu muito tempo antes de os portugueses invadirem o Brasil, no norte do que hoje conhecemos como o estado de Goiás, próximo ao Rio Maranhão.
Nós nos conhecíamos como Ãwa e vivíamos em paz na maioria do tempo, às vezes haviam disputas com outros povos irmãos, mas nunca foi como os não indígenas fizeram, apesar das disputas, havia sobretudo respeito.
A terra para o nosso povo era algo maior do que as pessoas veem hoje, não era sobre ter o maior lugar para realizar plantações, ou para criar o gado. É sobre conexão e ancestralidade, tudo que nós Ãwa, queríamos era respeito aos nossos locais sagrados.
Naquela vida que tive contato com a tal árvore da vida, aprendi meus primeiros dons, mas ainda não tinha uma noção real do que aconteceria. Comecei a ter contato com mais espíritos e mais seres. Para a maioria das pessoas as visões ocorriam pelo acaso, já para os que tinham recebido os dons, poderiam acontecer quando quiséssemos.
Era uma linha direta com seres de várias esferas, que foi se aprimorando com o tempo e através do tempo, vivi em todo o Brasil nas diversas vidas que tive oportunidade de ter. A última vida que tive antes da invasão foi aqui, onde se localiza Palmas hoje.
Aqui vivi a vida com Akwê, hoje conhecidos por Xerentes. Aqui o nosso povo teve suas experiências mais fortes com Dói e Wahirê, existia uma grande aldeia aqui, onde tínhamos nossas tradições e clãs devidamente respeitados, como foi desde o início do nosso povo.
Um tempo antes da chegada dos portugueses, algo começou a sair do eixo, parecíamos energicamente diferentes. A paz que vivíamos foi aos poucos sendo quebrada e vontades diferentes foram surgindo no coração de nosso povo, o que até então lutávamos contra, começou a se tornar um problema para todos.
Foi quando surgiram os guardiões e o dons que estes haviam recebido para cuidar do nosso povo e enfrentar qualquer inimigo externo começou a gerar dentro de nossa aldeia, ainda mais conflitos. Amkâ último filho de um dos clãs recebeu o dom de conversar e controlar as sombras, com elas os espíritos e até mesmo alguns corpos que haviam sido enterrados em nossa aldeia.
Ele se afeiçoou a Amãpra que se passou por um espírito da água e se mostrava como um espírito sábio e indicou a Amkâ que ele poderia ter poder sobre todos os poderes dos outros guardiões, caso conseguisse os ovos de uma Boiúna. Boiúna era como chamávamos um ser enorme com o formato de uma cobra, os seus poderes eram muitos, ela dominava todos os elementos naturais e podia desde mudar os cursos das águas, até criar outras espécies de animais.
Com tanto poder os outros guardiões acabariam se rendendo à força de Amkâ, então iniciou-se uma luta para tentar impedi-lo de encontrar os ovos. Os guardiões contaram com a ajuda de diversos seres que se preocuparam com a possibilidade de terem suas existências dominadas.
O fim dessa tentativa, foi uma explosão que acabou com toda a aldeia, não deixando nada para contar a história, exceto pelos dons dos guardiões que a mim fora confiado guardá-los para que não fosse usados até que chegasse a hora certa. O que não me foi revelado eram quais as condições para o uso.
Não acredito no acaso, por isso entendo que vocês provavelmente foram escolhidos para libertá-las. O grande problema que vejo é que com as essências de poder novamente andando no mundo através de vocês, os outros seres que foram sendo caçados e mortos pelos invasores, possam sair de onde estejam escondidos e principalmente, o que Boiúna pode achar dessa situação.
Àquela época não vimos para onde ela foi, a energia com a invasão se tornou extremamente caótica, gerando problemas em todos os territórios conhecidos. Inclusive sequer sei se ela sobreviveu, pois outras Boiúnas foram caçadas para que os invasores conseguissem seus poderes e muitas delas acabaram mortas.
Não há nada que os invasores tocaram que não se tornou um caos, tentaram acabar com a gente, com a nossa cultura e impor a cultura deles. O problema é que nunca seremos iguais a eles, nós aprendemos com o tempo que a natureza tem seu tempo e sua organização, eles até hoje não entenderam isso e acredito que não entenderão, exceto se algo muito ruim acontecer.
- Vó, estou com medo! - Raoni parecia extremamente arrependido de ter seguido Amãpra, mas sabia que não havia volta para o que havia feito.
- Filho, você e Akin são muito importantes, preciso que entendam que o domínio das essências deverá ser feito com muito cautela, pois não sei ao certo o que Amãpra está fazendo. - Mayara puxou o neto e o acariciou, em sua mente ela sabia que tinha muito trabalho pela frente - Não importa o que ele esteja planejando, vocês me tem para ajudar vocês em suas jornadas.
Aquele dia parecia ter sido o maior dia das vidas de Raoni, sua avó o chamou para dormir com ela. Talvez ele até conseguisse, mas na cabeça de Mayara se passava um filme com tudo que havia ocorrido, a mais ou menos 500 anos.
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O Mistério de Boiúna
Historical FictionNem tudo o que se sabe sobre o passado Brasil está correto, o passado guarda muito mais e os povos originários só não nos disseram antes porque sabem que ainda não estamos prontos para saber. A mensageira contou o necessário para que se descobrisse...