Sentindo azia, desligou o vídeo, e já ia tomar um remédio quando seu telefone tocou. Deu um pulo de susto, pois há muito acostumara-se com o aparelho mudo e fora de área. Atendeu.

– João – era Cláudia, e sua voz estava afoita – Finalmente te achei!

– Cláudia! Graças a Deus. Estava tentando ligar a você desde ontem.

– Não recebi nenhuma chamada. Você sequer me mandou mensagem.

– Mas eu tentei! A internet aqui é horrível...

– Sei. Escute, a embaixada contou-me tudo. O que deu em você para agredir um diplomata no seu próprio país? Ficou louco?

– Escute Cláudia, eu...

– Não João, escute você! Não devia tê-lo mandado aí, devia ter considerado seu envolvimento pessoal com o Brasil. Cometi um grande erro. Mas isso não lhe dá chancela para agir de forma tão estúpida e irresponsável. Sabia que teu caso já chegou aos ouvidos do Alto Comissário? Amanhã terei reunião com ele, terei de me explicar e dar um motivo para não te demitirem. O que espera que eu diga?

– Eu me passei, é verdade. Mas descontrolei-me por causa do massacre. Esses brasileiros são uns animais, diga a ele! Depois de fazerem aquilo, ainda ficaram rindo, fazendo graça com o sofrimento daquela gente. Isso mexeu-me os nervos, não pude suportar...

– Espere, espere. Falastes de massacre? Onde?

João emudeceu por um instante.

– Pois, não ficastes sabendo?

– Não. Eu deveria?

– Cláudia! Houve uma manifestação de populares ontem aqui no centro de São Paulo. Os militares os cercaram, atiraram neles, depois perseguiram, surraram e prenderam os sobreviventes. Não é possível que isso não tenha chego aí a vocês.

– Na verdade, chegou algo sim. Noticiaram um confronto entre forças de segurança e terroristas no centro, coisa lamentável. Os terroristas abriram fogo contra militares, mataram um policial. Três deles foram mortos, e agora a polícia parece estar a prender o resto do bando.

– Não! Eles não eram terroristas! Eram uma multidão, uma movimentação de pessoas sem-teto, queriam tomar algum prédio abandonado. Não tinham armas, foram atacados covardemente!

– João, estás a me dizer que as notícias foram falsificadas? Por que essa história de massacre não foi noticiada?

– Foram censurados! Eles controlam as emissoras, estão todas na mão do governo!

– Como algo assim pode passar despercebido? Sem relato algum de jornalistas, sem nem testemunhas?

– Sumiram com as testemunhas! Quanto aos jornalistas, já disse, eles os têm nas mãos!

– Mas nem os independentes? Nem um pio na internet? Nesses tempos onde qualquer um pode escrever e filmar para o mundo?

– Mas eu vi! Com meus próprios olhos...

– Estás a me dizer que só você viu isso?

Dessa vez João ficou sem palavras. Como conseguiram fazer isso, abafar algo desse tamanho? Impossível, ele viu, tinha certeza! E Cláudia, estava mesmo a duvidar dele? Sentiu agulhadas de dor no seu estômago, foi suando frio. Não podia ser, era insano, inacreditável.

– João – Cláudia falou baixinho, e sua voz esforçava-se para represar a ira. Nunca ouvira ela falar assim, nunca antes duvidara dele – O que eu faço com você?

– Eu...

– Cala-te João, apenas escute. Amanhã eu lido com o Alto Comissário. Mas terás de colher informações desse tal massacre, provar que tens razão. Espero realmente que consigas. Senão, não consigo garantir teu pescoço.

E desligou, deixando João a sós no quarto. A gastrite apertou, e ele foi se curvando, cedendo à dor e ao suor frio. Menos futuro, viva o presente, viva o presente, o presente. Ele viu, foi uma chacina, como ninguém mais teria visto? Absurdo, descabido. Mas afinal, o Brasil não passava de uma coleção de descabidos enrolados num saco sujo e esfarrapado de boas e más intenções. Tinha de ser prático, pensou enquanto tomava um comprimido para aliviar a dor. Se fizesse algumas ligações para as pessoas ou locais certos talvez pudesse juntar os testemunhos, as provas do crime estatal, um correspondente de guerra nessa guerra não declarada contra o povo. Mas seu telefone parecia só funcionar quando queria, e as linhas poderiam estar grampeadas. Teria de ir atrás das provas antes delas evaporarem, de serem silenciadas pelas balas, algemas e cassetetes. Corria contra o tempo. Mas e quanto à sua irmã? E se Zachia mentiu? E se ela estiver sob as garras do governo? Tinha de ir atrás dela, mas também tinha trabalho a fazer em São Paulo. Olhou para a foto da mulher sobre a estátua. Depois olhou pela janela, para as ruas lá fora, imaginando quantas situações piores que a de Inês elas ocultariam. Muitas dessas ele já conhecia. Seria egoísmo colocar uma só vida à frente de tantas outras. Mas essa uma era sua irmã. A irmã ignorada, esquecida, que de repente passara a ser importante, valiosa, imbuída do peso de uma vida deixada para trás. Com dedos trêmulos, pousou a foto sobre os lençóis, virada para baixo. E perguntou-se o que um irmão de verdade faria no seu lugar.

Vermelho como BrasaOpowieści tętniące życiem. Odkryj je teraz