Dois

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O dia vinte e um de todo mês é uma batalha. Nunca conseguimos simplesmente fechar os olhos e descansar. Por isso, meu pai e eu nos juntamos à sala e passamos a madrugada inteirinha assistindo a qualquer programação tosca na TV. Ele até se oferece para estourar pipoca, mas nunca temos fome de fato.

Nós até conseguimos fingir calmaria até uma e cinquenta e nove, mas então são duas da manhã em ponto e uma aura diferente invade a nossa casa. Congelamos. A recordação da dor vem à tona e ficamos em silêncio.

Minha mãe morreu numa madrugada fria do mês de agosto, tem dois anos e um mês. Morreu na frente de meu pai, sem conseguir sequer dizer uma última vogal, que dirá "adeus".

Os olhos que passavam tanta ternura se fecharam para sempre. A boca que não parava de falar se calou por uma eternidade e o sorriso que sempre lhe preenchia os lábios, já não estava mais lá. Ela não se fazia mais presente. Sua mão estava fria quando a toquei sobre o tecido fino. Eu tinha os mesmos detalhes, mas não a mesma pessoa. Não podia ser ela, pois se fosse teria respondido "eu também", quando, ao lado do caixão, lhe sussurrei: "vou te amar para sempre".

Parecia serena, mas não passava de um sono da morte e eu queria tirá-la de lá. Mas não podia. Ninguém naquela sala me ouvia ou me olhava. Queriam que eu comesse ou que saísse para dar uma volta, só que era impossível respirar direito quando meu motivo de viver estava morto.

Naquele instante, todo o oxigênio do mundo estava sendo sugado de mim. As pessoas choravam ao se aproximarem do corpo de Mônica, mas assim que se afastavam as lágrimas secavam. E eu estava furiosa! Olhava para meu pai e ele parecia uma rocha inabalável. Marcos não sabia o que me dizer, e não havia o que falar. Não há palavras que possam descrever a dor da perda.

Só que agora o relógio marca cinco e trinta e oito da manhã, e daqui meia hora eu deveria estar acordando para ir à escola, mas ao invés disso estou de mãos dadas com meu pai enquanto o observo dormir. Percebo que a noite foi de muitos pensamentos, esses que não chegaram a lugar nenhum, então suspiro longa e pesadamente.

Olho para os dedos de Roberto, tão bem encaixados aos meus, e lembro que eu ainda tenho um motivo para respirar. Então pego no sono. E quando acordo, não há ninguém ao meu lado. Meu pai, diferente de mim, não deixa de cumprir com suas obrigações por estar remoendo o passado. Ele sempre foi mais forte do que eu.

-x-

Marcos, como de costume, chega atrasado no sábado à tarde. Porém traz todo o material necessário para me deixar apresentável. Quando minha mãe era viva, ela quem me arrumava. Hoje quem cuida desse pequeno detalhe é meu melhor amigo.

— Daria tudo para estar nessa festa, só pra ver a cara das pessoas quando virem você toda maravilhosa! — ele diz animado, e não posso deixar de sorrir com sua piscadela.

— Deixa de ser bobo — digo e logo em seguida esboço uma careta, já que ele acaba puxando meu cabelo forte demais. — Eiii! Sem perder a cabeça, por favor! — ele pede desculpas, então decido emendar outro assunto: — E aí, você vai pra casa do Lucas hoje?

— Já que recusou meu convite, serei obrigado.

— Como se fosse um grande sacrifício!

— Quietinha! — diz, apoiando o indicador na boca em sinal de silêncio.

Um bom par de minutos mais tarde, Roberto está muito bem vestido e perfumado na minha frente. Pode estar na casa dos 70, mas neste instante não aparenta. Meu amigo, satisfeito com o trabalho, nos olha com satisfação.

O vestido de um ombro só, azul escuro, cai muito bem em meu corpo, apesar de eu sentir que é um número a menos que meu atual manequim. No entanto, os dois homens dizem que estou bonita, então acredito, porque me sinto assim. Não é todo dia que tenho tanto laquê em meu cabelo e cachos perfeitos, ou tantas camadas de rímel em meus cílios. Olhando minha imagem no espelho, me sinto confortável comigo mesma e sei que está tudo bem. Irá ser só mais um evento em família, onde terei que sorrir por algumas horas, parecer feliz e o mais importante: comer alguns docinhos.

Entre Espinhos (DEGUSTAÇÃO)Where stories live. Discover now