#47 - Conselheiros

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— Você ainda está por aqui, né? — Henrique me indaga, passando pelo pátio do cortiço. Já é noite.

— É, estou esperando pra falar com o andejo Eko.

Ele aponta para os dois olhos e depois vira os dois dedos pra mim. A ameaça de sempre, ou aviso, sei lá. Só que dessa vez ele faz de um jeito até engraçado. Começo a achar que ele foi com a minha cara.

A Snow gostou da surpresa que eu trouxe da feira mais cedo. Almoçamos juntos. Depois dei uma volta na feira de novo, dessa vez foi mais pra pensar. É o que mais tenho feito ultimamente, afinal de contas.

A porta da capela abre e sai um androide esquisito. Tem uma cobertura de pano grosso, como daquelas calças antigas, ou de sofá. É o que ele tem como pele, e é verde. Acho que mora aqui, no último piso, lá em cima. Ele passa por mim e parece que nem me percebe.

— Gael? — É a voz do Eko lá de dentro. Eu atendo e vou falar com ele. — Como tem passado, filho?

— Bem, eu acho.

— Pensou em tudo o que falamos?

— Pô, eu tava pensando justamente sobre pensar. Acho que nunca fiquei pensando na vida tanto tempo quanto ultimamente.

— Que bom! — Ele responde, com um sorriso no rosto. — É muito importante ter esse tempo pra pensar na vida. A gente vive numa correria tão grande que é difícil achar tempo. São esses momentos o que mais nos dá entendimento do mundo.

— Pensei que fosse o estudo.

— Não. Estudando a gente junta muito saber, mas a sabedoria mesmo só se trabalha com paz e silêncio. A gente analisa o saber juntado, as experiências, e vai tirando as conclusões. Você está no caminho certo.

— Será? E se ele estiver me levando pra um canto que eu não quero ir?

— Siga o seu coração e a vontade de Deus será feita.

— Certo. Você fala de silêncio ser importante, mas já passou por isso? Tipo ficar muito tempo tendo que pensar na vida?

— Claro que sim. Quando eu tive que cumprir minha Peregrinação, por exemplo. Pra ser conselheiro a gente passa pelo menos um ano estudando em Juazeiro com mentores. Quando passamos nas provações por lá, vem a Grande Peregrinação, que tem que ser feita de maneira solitária.

Sobre a formação religiosa dele! Eu me ajeitei na cadeira para ouvir melhor, que parecia interessante.

— Nessa peregrinação, nós saímos sozinhos e temos que passar por todas Juazeiros.

— E quantas são?

— São cinco.

— Nossa!

— Do Ceará, do Piauí, do Maranhão e duas na Bahia.

— E começam por qual?

— Qualquer uma. Desde que fundaram a Ordem da Anunciação, tem gente da ordem nas cinco Juazeiros para dar as instruções iniciais e acolher os peregrinos em formação.

— Interessante.

— Mas o que eu quero dizer é que viajando sozinho pelo chão, varando noite e dia, a gente aprende muito.

— E não pode viajar com ninguém? Tem que ir só mesmo?

— Sozinho. Quem aparecer a gente conversa, ajuda e até faz refeição junto, mas na hora de pegar a estrada tem que se despedir e ir só.

— Faz tempo que você é... Da ordem?

— Uns dois anos.

— Pensei que fosse recente. Disseram que você não ia ficar aqui muito tempo, que se agonia pra ir embora.

— Ha ha! Falaram isso? O povo fala demais! — Ele sorri, mas é um riso cansado. — A verdade é que a gente termina pegando gosto por viajar e acudir os necessitados por onde eles estiverem, ou quase isso.

— Entendo.

— Mas vamos falar mais de você. Já pensou no que realmente deseja da vida?

— Eita... Que pergunta difícil!

— Quem não sabe onde quer ir...

— ...nunca que chega!

— Não, vai onde o sistema quer.

— Sistema? Que sistema?

— Deixa pra lá, não é importante agora. Você precisa escutar seu coração, pois é por meio dele que Deus vai falar com você. Opções, acho que você tem muitas. Voltar pra casa dos seus pais, por exemplo, seria um recomeço clássico.

— Quero não.

— Por isso que eu disse: tem que descobrir o que você quer para o seu futuro, pra sua vida.

— Tá difícil.

— É, parece que sim.

Eu abaixo a cabeça e noto que ele também faz isso. Então me pergunta.

— Você não sentiu nenhum chamado?

— Como assim?

— O chamado de Jesus Rei, chamando pra estrada.

— Tipo vocação? Pra ser padre também?

Ele sorri com simpatia.

— Tipo isso, mas não sou padre, Gael. Estou falando de vocação para conselheiro.

— Senti não. Acho que nem levaria jeito pra esse tipo de coisa.

— Por que pensa assim?

— Sei lá.

— Sua vida está em grande mudança. Preste muita atenção que pode ter a ver com isso.

— Entendi.

— Então, vamos encerrar por hoje?

— Vamos. — Eu me levanto, mas antes de sair me sinto na obrigação de virar e dizer. — Andejo, acho muito massa essas conversas contigo. Muito obrigado por me receber.

— Não precisa agradecer, meu filho. Vai com Deus, São Cícero e São Cristóvão!

O Último Mototáxi de Arapiraca - COMPLETOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora