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Ano 850

- Você pode me dar alguns desses?

A mulher simpática do outro lado do balcão assente com um sorriso e se apressa em pegar os doces que acabo de pedir. A doceria cheia naquela hora do dia ferve com as conversas dos clientes que ocupam quase todas as mesas e com o movimento daqueles que entram apenas para pedir comida para levar, como Angela e eu. A mulher ao meu lado não para de falar um único instante, animada sobre como seria bom trabalharmos juntas no corpo de médicos do exército marleyano.

- Queria que minha mãe tivesse ficado tão orgulhosa quanto você. - Comento para ela, ajeitando melhor a sacola de papel em minhas mãos. Lina adorava aqueles doces e apenas em pensar na face da garotinha coberta de açúcar enquanto comia, meu coração parece se aquecer. - Mas ela só sabe falar de como eu deveria me preocupar em arranjar um marido.

- É compreensível. - Angela segura uma risada. - Com esse rostinho bonito e vindo de uma família rica, as pessoas não esperam nada diferente disso vindo de você.

- Eu ainda tenho vinte, e acho que sou bem mais útil como médica. - Seguro o braço que Angela me oferece quando deixamos a doceria. - Mesmo que eu tenha que trabalhar com alguns demônios.

- Odeio quando os chama assim. - Angela balança a cabeça devagar. - Se você não fosse minha melhor aluna, eu lhe daria uma surra.

Ela me empurra levemente para o lado com os quadris e continuamos caminhando, chegando até a praça, tão movimentada que parece um distrito de concentração, as pessoas andando rápido por todos os lados ocupadas com as próprias tarefas. Sobre o som da voz de Angela e de todo o burburinho que enchia o local assim como o ruído dos carros na rua mais a frente, ouço a brisa fresca da primavera chiar um pouco em meus ouvidos e fecho os olhos por alguns instantes, aproveitando o sol em minha pele após quase duas semanas apenas com chuva.

A mulher ao meu lado para de andar de súbito e sou obrigada a fazer o mesmo, olhando para a mesma direção que ela, onde algumas pessoas começavam a se aglomerar. Sinto sua mão apertar a minha brevemente e olho para Angela, os olhos aflitos na direção da pequena multidão. Acho que tanto eu quanto ela sabemos do que se trata, afinal, era cada vez mais comum ver Eldianos sendo atacados naquela praça. A maioria geralmente apenas vinha tentar roubar um pouco de comida.

O que lhes tira todo o direito de reclamar quando são apedrejados daquela forma.

- Mas o que... Espere! - Não tenho tempo de segurar a mulher, que corre na direção das pessoas que agora se afastam do chafariz no centro da praça, os rostos mal humorados e indignados, as vozes baixas ainda sussurrando ofensas. - Ah, merda.

Paro onde estou quando tenho uma visão clara do pobre coitado que havia sido atacado. A criança está deitada no chão encolhida, os braços franzinos protegendo a cabeça das pedras que agora jazem ao seu redor no chão, algumas sujas do sangue que escorre dos vários ferimentos do garoto e mancha as pedras claras da calçada em vermelho vivo. Sinto meu estômago revirar e meus olhos vão direto para a braçadeira cinza em seu braço, próximo da baguete jogada no chão mais a frente. Típico.

Me pergunto qual seria a história triste por detrás daquele garoto. Órfão? Talvez uma família tão miserável que se alimentaria daquele único pedaço de pão amassado por dias? Qualquer que fosse, já a escutei antes e inúmeras vezes. Angela se abaixa ao lado do garoto, retirando as mãos pequenas de seu rosto e o encarando por alguns instantes. O menino parece estar em estado catatônico, os olhos claros arregalados para ela até que encontram os meus enquanto a mais velha analisa os outros ferimentos dele.

Sinto um arrepio percorrer minha espinha diante daquela imagem. Por que Angela está o ajudando? Por que eu não estou o ajudando? A irritação crescente dentro de mim diante daquele pensamento faz com que eu cerre os punhos e prenda a respiração por alguns instantes, relutante diante do impulso de me abaixar sobre a criança e ajudar a cuidar dela como puder. Mas não posso, não é como se fosse um problema meu. Me lembro bem de todas as vezes em que ouvi meu pai falar o quanto os demônios de Eldia eram repugnantes e em como cometeram atrocidades no passado contra inúmeras pessoas.

Eles merecem o tratamento que recebem.

Giro nos calcanhares para ir embora mas sou interrompida pela voz aguda de Angela, que chega até meus ouvidos como agulhas pontudas.

- Amarie! - Ela toma o garoto nos braços, fazendo com que se levante com dificuldade. - Me ajude a leva-lo até meu consultório, acho que fraturou uma costela.

- Não. - Respondo de imediato, me virando para ela novamente. - Ele veio até aqui roubar e pode lidar com as consequências ele mesmo.

- Inacreditável. - Ela abaixa a cabeça, voltando a olhar para mim novamente logo em seguida. - Ele deve ter a mesma idade de Lina, o que faria se fosse ela no lugar dele?

- Minha irmã nasceu marleyana, Angela. - Suspiro, voltando a caminhar. - Se quer o ajudar não vou dizer nada, mas não peça minha ajuda.

Continuo andando até finalmente deixar a praça, tentando parecer o mais despreocupada possível, mas com o olhar assustado do garotinho eldiano ainda queimando sobre minhas costas. Me recuso a virar para encará-lo, até mesmo porque já estou longe o suficiente para sair de seu alcance. Nunca havia parecido justo para mim que as pessoas hoje paguem por crimes de seus antepassados, mesmo que fossem tão horríveis.

Entretanto, nunca ninguém havia me ensinado nada diferente daquilo. Ninguém nunca havia me dito nada convincente o suficiente sobre aquelas pessoas que me fizesse pensar novamente a respeito delas. Sempre as vi roubando, rastejando por aí doentes e com os semblantes caídos. Nunca nenhuma delas havia me convencido ser boa o suficiente para que eu confrontasse meu pai e toda a sua ideia de que éramos melhores do que eles.

Além de que, era como acariciar meu ego saber que sou melhor que alguém apenas por ter nascido desse lado dos portões e carregar um sobrenome importante comigo. Respiro fundo e volto a dar de ombros quando a imagem do garoto aparece em meus pensamentos, que são interrompidos por uma voz masculina.

- Senhorita, por favor! - O homem se aproxima. Não deve ter mais de vinte anos e carrega no braço uma braçadeira amarela. Um candidato a guerreiro.

- O que foi? - Pergunto, me arrependendo em seguida de parecer tão rude.

- Eu estou procurando meu irmão. É um garotinho loiro, dessa altura... - Ele ergue a mão até sua cintura, a levando até o cabelo e puxando os fios castanhos enquanto olha para todos os lados da rua. - Ele fugiu hoje cedo e tenho medo que tenha se metido em algum problema.

Merda.

Engulo a seco e desvio o olhar para minhas próprias mãos, que seguravam com força a sacola de papel da doceria, agora amassada. O que eu poderia dizer a ele? Respiro fundo e apenas aponto na direção da praça, o ouvindo murmurar um "obrigado" e correr para onde seu irmão deve estar se Angela ainda estivesse com ele. Observo o garoto se afastar e volto a atenção para meu próprio caminho, sentindo um desconforto em meu estômago.

Afinal, por que me sinto mal por aquela criança? Era apenas um moleque eldiano, não era como se eu fosse responsável por ele ou por seu bem estar. Não era como se ele fosse importante de alguma forma.

Não é como se ele fosse um problema meu.

Lionheart I Erwin SmithOnde as histórias ganham vida. Descobre agora