Capítulo 44

3.3K 349 351
                                    

          Azriel só conseguiu prosseguir com o plano de distrair Neali e Cadina porque percebeu que elas e a peregrino morena ficaram verdadeiramente chocadas com o que a amiga falou. Não chamou a terceira fêmea simplesmente porque não se lembrou do nome; precisava sair do camarote antes de estragar todo o disfarce e avançar na fêmea loira, ofendido por Lucien e por si mesmo. Há mais de cinco séculos suportava os comentários de nojo sobre suas mãos, mas sempre havia aqueles momentos em que as pessoas olhavam somente para seu rosto e podia sentir que não tinha nada de errado com ele. Pelo menos até verem suas cicatrizes. Não podia, não queria imaginar como Lucien se sentia exposto o tempo todos aos olhares hostis.

          E não era só o comentário sobre a cicatriz que o irritava; Azriel também detestou o teatro. Detestou ver Lucien abraçado a Nuan. Sabia que a ideia foi sua, que era fingimento, mas o pouco que tinha ouvido naquela festa sobre o que os dois faziam nos Calanmai por décadas era o suficiente para incomodá-lo. Detestou ver a intimidade com que conversavam, quando o próprio Azriel estava extremamente incomodado por ter que abraçar Neali e fingir que queria levá-la para a cama. Tentava se acalmar ouvindo Neali tagarelar sobre as festas da cidade sem prestar atenção no que ela dizia.

          Cadina alcançou o illyriano e a amiga a alguns metros do camarote e se enroscou no braço livre do mestre espião. Percebendo que ele estava distraído, aproveitou para levantar as sobrancelhas em um recado mudo para Neali; esse era o momento perfeito das duas fazerem o que as amigas tinham proposto na mesa durante a ausência de Azriel, mas sem ter que dividi-lo com tantas fêmeas. E sem que Cadina precisasse dividir Neali com as outras fêmeas.

          — Peço desculpas pela grosseria de nossa amiga, Azriel — Cadina disse.  — Sei que o comentário magoou o Lucien, mas ela não é tão ruim assim.

          — Eu não me importo se ela magoou o Lucien. — a mentira doeu tanto que as sombras se agitaram com irritação — O problema é a ofensa a um representante diplomático da Corte Noturna.

          — Ela é tão ruim assim, sim! — Neali se inclinou para a frente e lançou um olhar duro para a amiga, antes de se voltar para Azriel — Olha, é possível que ela apareça na festa em que estávamos pensando em ir. Acho que devemos ir a uma outra festa, é um lugar...

          Azriel escutou o coração de Cadina acelerar mais com o olhar da amiga do que com o convite para acompanhá-lo. Ele deixou que as sombras deslizassem pelos ombros das duas, como se realmente desejasse a companhia das fêmeas. Foco, preciso manter o foco. Cadina não foi boa em aguentar Neali sozinha comigo por muito tempo na frente de todo mundo, vai ser mais fácil ainda em uma festa. Depois de algumas taças de vinho poderei deixá-las sozinhas. No máximo em meia hora estarei com o Lucien se bebermos rápido...

          — O que vocês quiserem. — Azriel conseguiu manter a voz estável e puxou o corpo das duas para mais perto enquanto andavam. Ele não reparou no sorriso malicioso e triunfante das fêmeas.

          Inconscientemente contraiu as asas um pouco mais no centro das costas, evitando que as penas das asas delas tocassem em seu couro. Não se importava para onde estavam indo, iria embora o mais rápido que pudesse de qualquer forma. O importante é que fossem a algum lugar em que pudesse ser visto com elas para que a fofoca se espalhasse pela Corte Crespuscular.

°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°

           — Não fique com essa cara, Lucien... — Nuan lhe entregou um copo de bebida.

           Lucien os atravessou de fora do camarote direto para a sala do apartamento; nenhum dos dois estava com vontade de ficar perto dos peregrinos essa noite. Nuan sabia que Neali e Cadina não concordavam com aquela peregrino detestável, mas também sabia que, se ficassem em algum lugar perto do camarote, as amigas poderiam encontrá-los e iriam piorar tudo tentando fazer Lucien se sentir melhor. As amigas não parariam de falar sobre como a cicatriz o deixava ainda mais bonito, sem perceber que estariam enfatizando o quanto a cicatriz era evidente no rosto de Lucien. 

          — Ele ficou , Nuan, do lado daquela peregrino — Lucien rosnou antes de dar longos goles na bebida. A fêmea trouxe algumas garrafas do bar para a mesa de centro e sentou ao seu lado no sofá. — E não falou nada!

           — Não há como ter certeza disso, Lucien. — ela estalou os dedos da mão mecânica, os estalos metálicos preencheram a sala por alguns segundos. — Nós saímos rápido de lá.

           Nuala surgiu, a face parcialmente coberta por sombras, e deixou na mesa o prato que Lucien fez para Nuan no camarote. Na pressa de saírem de lá, o prato tinha ficado para trás praticamente intocado. Lucien se perguntou vagamente se a meio-espectro estava escondida os vigiando das sombras do apartamento, ou se apenas foi gentil e estava do lado de fora garantindo a segurança dos dois. Nuan pegou um doce e gesticulou para o ponto onde a espiã esteve.

          — O Azriel desafiou toda a Guarda trazendo os espiões da Corte Noturna sem informar ao Alden com antecedência. Todos os convidados do meu Grão-Senhor estiveram em perigo e, de repente, o Azriel mostrou o quanto era fácil invadir o palácio, expondo a fragilidade dos encantamentos e da segurança. Eu não esperaria nada menos de um macho que ama você, mas isso mexeu com o orgulho dos peregrinos.

Corte de Chamas e Sombras Onde as histórias ganham vida. Descobre agora