Coração Prematuro

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Estou ficando cada vez maior. Sei disso porque o lugar dentro de mamãe onde eu ficava não era tão apertado quanto está agora. Não estou reclamando, porque ficar junto dela, tão fortemente e tão perto é a melhor benção que já recebi. Posso me sentir um pouco desconfortável, mas isso não é nada comparado à felicidade que o corpo de mamãe me proporciona. Não devo reclamar, não seria justo com ela, que passou esse tempo cuidando de mim. Imagino as dificuldades que ela tenha passado para me sustentar. Mamãe é uma heroína.

De repente, sinto minha cabeça rasgando uma fina película que se encontrava logo acima de mim e libero para fora uma parte do líquido onde estava boiando.

Machuquei mamãe.

Entro em pânico. Não tenho como saber o quão ruim foi o estrago, pois estou completamente impotente. Nunca me perdoarei se tiver causado qualquer tipo de mal a ela. Depois desse tempo todo em que ela me protegeu é assim que a agradeço!

A situação começa a ficar ainda mais fora de controle. Algo segura minha cabeça e me puxa vagarosamente para fora de meu lar. Será essa minha punição? Nada mais justo. Se a machuquei, devo arcar com as consequências, não mereço mais estar dentro dela.

Abro os olhos, mas eles ardem devido à luz ofuscante que penetra neles. Estou com medo, agora mais da metade do meu corpo foi puxada para fora. O que acontecerá comigo quando ele sair por completo?

Agora sinto mais mobilidade nos dedos, então aperto-os com força. Não adianta lutar, não tenho força alguma comparada à grande mão que me puxa. Assustado, não me resta nenhuma opção, então choro. Para piorar a situação, ouço ainda mais claramente do que ouvia antes os gritos de mamãe, então tenho certeza de que estou a machucando. É a pior sensação do mundo. Eu só quero seu bem, só quero ouvir sua linda voz e deixá-la feliz, mas nem isso consigo fazer.

Algo estranho penetra meu nariz e faz meu peito inflar. Não estou mais boiando, estou sendo segurado por um desconhecido, e sinto que cairei se ele me soltar. Não estou mais seguro e quentinho dentro de mamãe, estou em um lugar barulhento, assustador e que me cega.

Choro mais alto. Berro. Sacudo os pés. A única vantagem de sair de onde estava foi que adquiri controle total do meu corpo, e meus membros me obedecem com muito mais facilidade.

Sou erguido ainda mais no alto e sou tomado pela vertigem. Fecho os olhos, esperando que esse pesadelo acabe logo. Me deitam em um recipiente cheio d'água. Ela é quente e traz um certo alívio quando toca minha pele, mas não é a mesma água que me manteve vivo dentro do corpo de mamãe. Essa não me trás familiaridade, é quase artificial para mim.

Outras duas grandes mãos começam a esfregar todo o meu corpo, tirando os resíduos amarelados e avermelhados que me cobrem. Continuo chorando, apesar de não sentir nenhuma dor. A cada esfregada uma parte de mamãe é tirada de mim, e com isso um pedaço da minha vida sai escorrendo por um ralo, e sei que nunca mais o verei outra vez. Fico ainda mais desesperado quando cortam o cordão em minha barriga. Aquilo era o único resquício de mamãe que ainda me restava, e até ele foi destruído.

Quando a lavagem termina, me envolvem em panos e imediatamente coloco os dois braços para fora. Essa é minha maneira de lutar. Sei que sou fraco e minhas chances de vencer são mínimas, mas ainda tento ao máximo provar a eles que não aceito ser preso e imobilizado.

Mas quando meus olhos, agora já mais acostumados com a luz, captam um certo rosto, meu choro cessa. Minhas mãos tremem. Não consigo acreditar. Estou olhando diretamente para aquela pessoa sem a qual eu não teria nem uma chance tampouco um motivo para viver.

Pela primeira vez vejo mamãe.

Seu peito sobe e desce com rapidez. Sua testa está toda suada e seu olhar parece cansado. Mesmo com tudo isso, é a criatura mais linda daquele recinto. Seus olhos e cabelos são negros, e seu rosto e corpo são pequenos – bem pequenos, comparados com o que eu imaginei que seriam – o que lhe dá uma aparência relativamente frágil. Gosto disso. Já temos algo em comum.

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