O Ser e o Nada

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                Num destes momentos da vida, retornando de carro e voltando para casa depois de mais um dia de trabalho, resolvi procurar uma estação no rádio que fosse diferente daquela que sempre ouvia. Fui ali, apertando a sintonia, entre ruídos sonoros e chiascos de interferência, chamou-me a atenção alguém falando alto no rádio. Falando alto é modo de dizer, pois aquela pessoa gritava ao microfone.

            Rapidamente identifiquei o assunto e o tema de tamanha euforia. Era mais um culto evangélico, de linha pentecostal ou neopentecostal, sei lá, no qual o pastor ao entrevistar o fiel, sugestionava este a responder conforme lhe aprazia. Se o indivíduo estava doente, fora no médico e o raio-X não mostrava nada, então aquilo que não aparecia no exame, mas que incomodava a pessoa em questão, era o próprio capeta enrustido e escondido sob aquela enfermidade. 

            Lembrei de tempos idos, no qual estava inserido em uma igreja cristã evangélica. Agradeci por ter a oportunidade de conhecer o Evangelho. De ter a possibilidade de ser instruído, de ser edificado na fé em uma igreja que primava pelo ensino da Palavra, pela seriedade do texto e do contexto bíblico, que não se moldara a fórmulas de sucesso para arrebanhar fiéis para seu rol de membros apenas para engrossar as estatísticas.

            Isso me fez pensar nos dias atuais. Ao observar as redes sociais, percebo que os jovens vivem numa pluralidade de conceitos e significados os mais diversos. Não deve ser fácil por exemplo, para um jovem cristão, afirmar a sua fé diante de tantos escândalos envolvendo a igreja. Conciliar o que é ensinado nos púlpitos com a vida prática, seja na escola, no trabalho ou mesmo no seu grupo social e familiar é por si só uma tarefa árdua. Aliás, as vezes a mensagem que recebe é anacrônica, desproporcional e descontextualizada de sua realidade. Daí a dificuldade em fazer-se entender num mundo aonde a pluralidade e a diversidade são marcas registradas desse nosso sistema de crenças e valores os mais distintos e variados. 

            Esse jovem convive também com tatuados, ateus, homossexuais, agnósticos, neopagãos, e por aí vai. Gente pela qual a igreja tem dificuldade enorme de lidar e que normalmente vê como ameaça a sua integridade. Diferentemente de uma postura que deveria ser verdadeiramente cristã, de acolhimento, de aceitação da pessoa e de amor para com ela, não necessariamente sendo favorável a suas práticas ou conceitos, mas respeitando essas diferenças.

            Por isso a dicotomia cristã da atualidade, a crise do Ser. Se eu sou cristão, como deverei então permanecer fiel aos meus princípios diante de tamanha pluralidade de conceitos e definições os mais diversos? Como viver o cristianismo autêntico sem no entanto ser indiferente ou intolerante com quem pensa diferente e como pessoa humana tem os mesmos direitos que temos de manifestar opiniões discordantes?

            Para alguns, a resposta seria a diferença e o distanciamento, já para outros seria a semelhança para poder comunicar o Evangelho de uma maneira que essas pessoas entendessem a mensagem. É interessante lembrar como o próprio Jesus lidou com questões semelhantes, dentro de seu tempo. Senão, vejamos.

            Uma breve leitura dos evangelhos nos mostrará que Jesus sabia conviver com todos e em todos os tipos de situações de maneira sóbria, inteligente, por vezes firme quando necessário, mas sempre motivado pelo amor. Não evitou conversar com uma mulher a sós, mesmo que nos seus dias isso fosse reprovável, ainda mais sendo ele judeu e a mulher samaritana. Conversou com um cobrador de impostos, e fez questão de ser recebido em sua casa, mesmo sabendo que ele fora corrupto.

            Quando os religiosos de sua época impingiram um juízo de morte a uma mulher pega em adultério, fez com que olhassem para o seu próprio coração pecaminoso, e lançou o desafio de que caso alguém fosse justo o suficiente, que condenasse aquela mulher. Não permaneceu ninguém! Ele mesmo, que poderia ter proferido a sentença, preferiu não fazê-la, ao contrário, ainda despejou perdão no coração daquela que ali estava na sua frente: "Nem eu te condeno, mulher. Vai e não peques mais." Poderia me estender discorrendo das curas realizadas, da ajuda aos necessitados, das palavras de vida que proferiu. Mas está tudo ali, nos evangelhos. Basta ler com o coração desejoso de aprender com o Mestre. 

            Portanto, diria que a crise do Ser, que em nós é latente, continuará diante dos desafios e das particularidades que o mundo moderno nos apresenta. Mas temos um alicerce, uma rocha, um fundamento no qual podemos e devemos nos embasar, sem deixarmos nos enganar por toda sorte de manipulações ou interpretações as mais estapafúrdias possíveis em relação ao evangelho de Cristo. Precisamos ler e entender o que Jesus nos deixou como ensino e quem sabe, a partir desses ensinamentos, procurar viver o evangelho de maneira simples, como de fato é. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!

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