EU QUERO UM REFIL! - Mario Persona

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O filme despertou em mim um pensamento: E se o Pedro estiver cuidando de mim tanto quanto eu me dedico a cuidar dele? E se as coisas que ele aprendeu forem tão poucas, por eu ter sido pior cuidador dele, com quem aprendi tanto, do que ele de mim?

Sim, aprendi muito. Mas para que você entenda a história toda, vou tentar explicar. Quando o adotamos, recebemos quatro anos de criança acondicionados num corpinho esquálido que não aparentava mais do que um ou dois. Pedro não falava e os médicos apostavam que nunca seria capaz de falar. Tampouco seria capaz de andar ou coordenar seus movimentos com precisão em razão da paralisia cerebral. Suas deficiências o impediam de se comunicar, e os únicos estímulos que chegavam ao seu cérebro vinham dos quatro sentidos que restavam, pois também nascera cego.

Sua chegada em 1986 foi um marco em meu processo de aprendizado de comunicação. Sim, é aí que Pedro entra na minha história como meu cuidador e professor. A partir daquele dia seria eu quem iria aprender a me comunicar. Ele seria meu professor.

Quem acredita ter algo a comunicar deve dar o primeiro passo, que é aprender tudo sobre o alvo de sua comunicação. Comunicação nada mais é do que comunicar uma ação, ou fazer com que nosso interlocutor interprete e responda a um estímulo. Porém, para obter essa resposta é preciso desenvolver uma percepção capaz de interpretar corretamente o outro, o que não se faz sem envolvimento e dedicação.

O primeiro passo no desenvolvimento da percepção é abrir mão dos preconceitos e filtros que vamos ganhando à medida que os anos passam. É preciso rever nossa capacidade de perceber o outro para interagir com ele. Postura, expressões, entonação, gestos, olhares - tudo comunica e tem um peso enorme no sucesso de uma conexão que crie uma frequência comum a ambos. Essa frequência comum, ou rapport, permite criar uma relação de sincronismo e equilíbrio na comunicação entre duas pessoas com diferentes capacidades de recepção e interpretação de estímulos. Se é difícil? Digamos que seja algo como fazer um telégrafo trocar dados com um smartphone.

Quando me vi diante do desafio de me comunicar com uma criança com múltiplas lesões precisei entender que diferenças nem sempre são deficiências. Para quem nasceu de um jeito, diferente é o outro. Provavelmente era essa a impressão que meu recém-chegado filho tinha de sua nova família. Vivíamos em mundos diferentes e seria preciso construir, pouco a pouco, a ponte da comunicação entre nós, e decidimos fazer isso sem dó e sem máscaras de falsa piedade.

Eu precisava descobrir como fazer essa conexão e me comunicar com uma criança que durante três anos fora privada de qualquer estímulo, presa a uma cama de maus tratos em um barraco qualquer. Em todos esses anos de convivência Pedro tem sido meu melhor professor de comunicação, embora até hoje ele só tenha aprendido a falar uma palavra. E não fui eu quem ensinou.

Não se iluda achando que uma boa comunicação possa ser garantida por fórmulas de sucesso ou títulos acadêmicos. São seres humanos que se comunicam, e nesta área nem tudo é aprendido nas universidades. Criatividade, imaginação e intuição são habilidades naturais que fazem parte do processo, como aprendi com o que aconteceu com meu filho no aprendizado da única palavra de seu vocabulário.

Embora profissionais especializados tenham tentado, a única pessoa que conseguiu lhe ensinar esta única palavra foi dona Ângela, uma faxineira que trabalhou em casa por alguns meses. Ela nunca soube o significado da palavra rapport, jamais cursou uma universidade e nem sabia falar português correto, mas foi capaz de abrir caminho para uma comunicação falada de mão dupla, ainda que limitada a um único verbo. Seu método foi tão simples e ingênuo quanto deve ser qualquer método que busque encantar as pessoas. Ela simplesmente frisava muito bem que iria "cantar", e começava: "Atirei um pau no gato-tô, mas o gato-tô...". Pedro ficava extasiado, batia palmas, gritava, gargalhava e sacudia o corpo para frente e para trás, como sempre faz quando está alegre.

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⏰ Última atualização: Aug 12, 2013 ⏰

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