Capítulo XIX

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He wanted to change the world, to make it all worthwhile

Moving On, Asking Alexandria

- Qual é o ponto da situação, Lucas?
Acabávamos de entrar em casa e Ezra já estava no meio da biblioteca, reunido com Lucas, Yeres e mais um ou dois demônios cujos nomes eu desconhecia. Mesmo que, dentro daquela sala, tudo parecesse normal, se conseguia perceber uma tensão estranha, presente na ruga entre as sobrancelhas de Ezra e no cabelo demasiado despenteado de Lucas.
- Estão perto, muito perto. - respondeu o demônio da traição.
- Conseguíamos ver o fumo negro da casa da falésia.
- E na outra direção já é possível ver o dos Cavaleiros do Paraíso. A coisa está ficando preta.
- Ainda não estamos preparados. Nem pouco, mais ou menos. Não treinamos os humanos, os demônios não estão devidamente concentrados, ainda não tenho a certeza de que os anjos não fugirão quando chegar o momento... - Ezra apoiou suas mãos na mesa, fazendo seus ombros parecerem duros como pedra. Seus olhos passavam de um lado para o outro, como eu sabia que faziam quando ponderava alguma coisa. - Chamem-nos a todos. Anjos, demônios, humanos, quer queiram quer não. Expliquem-lhes a situação e digam que, sem a ajuda de todos, morreremos todos, sem exceção.
Os demônios assentiram com a cabeça respeitosamente e saíram pela porta, todos menos Lucas, provavelmente, por ser o braço direito de Ezra.
- Você sabe que não tem de fazer isto, não sabe? - perguntou.
- Diabos, claro que sei! - bateu com o punho na mesa. - Se, ao menos, Lúcifer estivesse aqui, fazendo a merda de seu trabalho eu não estaria nesta posição. Mas ele está sabe-se lá onde, trepando com humanas, demasiado ocupado para perceber o que está acontecendo! Se eu não fizer isto, se nós não fizermos isto, quem fará?
- Tem razão. Vou tratar de chamar todo o mundo. - sem sequer olhar para mim, Lucas saiu.
- Desculpa. - falou Ezra, se aproximando. - Não queria dizer aquilo. - se referia às humanas de Lúcifer.
- Não há problema. Sei que não é uma situação propriamente normal. - respondi, abraçando-o pela cintura.
Seus braços me rodearam e seus lábios beijaram meus cabelos.
- Tenho medo...
Levantei a cabeça para o olhar.
- O quê? - inquiri, pensando que tinha ouvido mal. Era impossível para Ezra dizer que tinha medo, era impossível para ele dizer que...
- Tenho medo. - repetiu.
Senti minhas sobrancelhas se franzirem.
- Por quê?
- Toda a minha existência, fui consciente de minha imortalidade e, agora, de repente, sou obrigado a rever todo o meu esquema de crenças. - seu olhar se perdeu em meus pensamentos. - Talvez, se soubesse mais cedo, teria sido diferente. Teria sido menos narcisista e arrogante. Teria procurado fazer o bem. Teria sido melhor para você e não te teria obrigado a ir ao inferno torturar aqueles humanos. Sei que o detestou. Mas não é isto que me dá medo. Não tenho medo por mim. Não sei o que vem a seguir, mas, provavelmente, será o vazio total. O vazio não é mau. Tenho medo por você. - finalmente, me olhou. - O que acontecerá com você? Talvez fique aqui, sozinha, sem ninguém que a proteja... - afagou meu rosto com os nós dos dedos. - Ou talvez, eu não consiga proteger você e acabe por ir parar a algum lugar escuro, ao vazio. Ficará assustada e eu não estarei lá para te fazer pensar em outras coisas.
- O vazio não é mau. - repeti o que ele dissera, ainda que, no fundo, estivesse tão assustada quanto ele descrevia. A morte nunca antes me afligira, porque acreditava piamente na existência de um lugar no paraíso para onde iam as almas. Mas, e se Ezra tinha razão e tal lugar não existia?
- Você não gosta do vazio. - sua expressão endureceu. - E eu não vou deixar que vá para lá. - pegou em meu braço e me conduziu para fora da biblioteca.
- A Resistência já chegou. - anunciou Lucas, quando passamos por ele.
- Ótimo. Trás o profeta até lá embaixo.
- Lá embaixo onde? - questionei, mas ninguém me respondeu. Ezra continuou me arrastando atrás dele. Na cozinha, pegou numa mochila que estava em cima da mesa e começou descendo as escadas que davam até à cave. - Para onde vamos?
Mas eu já sabia. Já estivera ali antes.
Paramos antes da porta e Ezra colocou a mochila em meus ombros. Era pesada.
- O que é que está fazendo? - perguntei, ainda que começasse tendo uma ideia exatamente do que ele estava fazendo.
Me observou atentamente, atentamente demais, como se quisesse gravar minha imagem em sua mente para todo o sempre.
- Não... - murmurei, numa voz fraca e com os olhos úmidos.
Ele emoldurou meu rosto com suas mãos quentes e me beijou. Não com carinho ou com paixão, mas com necessidade, com medo e com uma saudade que ainda nem sequer tivera desculpas para ser real, mas era e se conseguia notar pelas lágrimas que molhavam nossas faces e que eu nem sequer sabia dizer, com certeza, de quem eram.
- Humanazinha...
- Não...
- É o local mais seguro. Ali estará a salvo. Você e o moleque. Com ele, saberá o que se passa. Espere, pelo menos, sete dias contando depois de amanhã para sair. Amanhã, já deve estar tudo terminado. Em sete dias, um novo mundo renascerá e você fará parte dele.
- Não!
- Sim. - ele disse, ainda me segurando o rosto. - Você viverá, Hannah. Me prometa que viverá e que não sairá antes de tempo, por favor. - sua face se contorceu numa careta de dor. - Me deixe, ao menos, fazer alguma coisa bem. Me deixe fazer isto bem.
- Não. - segurei seus braços com força. Talvez, se o segurasse com força suficiente, ele não conseguisse ir.
Ezra juntou sua testa à minha.
- Eu amo você, Hannah, minha humanazinha. Nunca pensei que fosse sentir isto, um dia. Obrigada por me mostrar que amar alguém não nos torna mais fracos. - apesar de tudo, ele tinha um sorriso nos lábios. - Obrigada por ter arranjado coragem para me amar.
- Não, Ezra! Não! Fique comigo. Por favor... Não vá... - supliquei.
- Não posso. Tenho de ir. Eu é que juntei estes seres aqui e eu vou conduzi-los, nem que seja à morte.
Me atirei contra seu peito e o abracei com todas as minhas forças, enquanto meu coração estava em estado de negação, me dizendo para não o largar, para o arrastar comigo, para mandar à merda o apocalipse e os cavaleiros. Por que é que eu não podia ser feliz? Por quê? Será que não merecia? Será que fizera assim tão mal?
- Eu amo você, Ezra, não quero que vá. - sussurrei.
- Eu sei, mas também sei que tem consciência de que tenho de ir.
Levantei a cabeça para o olhar.
- Não...
Com um sorriso nostálgico, Ezra brincou com meus cabelos, como fizera tantas vezes.
- É tão especial. Deveria ter adivinhado naquele dia. Você foi o melhor que me poderia ter acontecido. Melhor do que eu alguma vez mereci. Talvez, seja minha punição. Saber que tive tão pouco tempo com você.
Ouvi passos na escada e Lucas e Ari apareceram. Ezra se afastou de mim e se baixou junto ao pequeno profeta.
- Vai com a Hannah para um lugar que pode ser assustador, então, tem de tomar conta dela. Pode ser, moleque?
Ari assentiu, com uma expressão demasiado adulta para suas feições.
- Obrigada. Não deixes sair antes do momento certo, está bom? - continuou. - Tenho a certeza que saberá qual. - foi até à porta e a abriu, antes de se voltar para mim, novamente. - É agora, humanazinha. Pode parecer egoísta de minha parte, mas pensará em mim? De vez em quando? - inquiriu, com uma expressão inocente.
- Oh, Ezra! - abracei-o, novamente, e senti-o quando inspirou o cheiro de meus cabelos. - Eu te amo tanto...
Afastou a cara apenas a poder aproximar novamente para um último beijo.
- Eu também, humanazinha. Mais do que tudo o resto. Por isso é que estou fazendo isto. Agora, me prometa que não sairá antes. Sete dias a contar depois de amanha. Me prometa.
- Não!
- Hannah...
- Não, não!
- Não percebe que a única maneira de eu morrer em paz é saber que você está bem? - gritou.
Parei no tempo, observando-o. Olhei para aqueles olhos escuros, para as faces bem esculpidas, para a boca...
Se aquela seria a última vez que o veria. Então, faria questão que estivéssemos bem e que nunca mais me esqueceria dele. Como se isso fosse possível...
- Está bem, prometo.
Ele fez um sorriso aliviado.
- Se tiver problemas lá embaixo, mostra o anel. Ficará bem.
Assenti, ainda que tivesse um peso enorme no lugar do coração. Olhei para a porta. Ari já estava do lado de dentro. Caminhei para lá. Estava prestes a entrar quando me voltei para abraçar Lucas.
- Tome conta dele. E de você também. - pedi-lhe.
- Pode deixar. - assegurou o demônio e, por alguma razão, isso me deixou menos aflita.
Voltei para Ezra e o abracei, também, pela última vez. Dei-lhe um último beijo e senti seus cabelos e a sua pele pela última oportunidade.
- Levarei sua lembrança para o vazio, Hannah. - ele sussurrou e as lágrimas retornaram a meus olhos.
- Não seja o herói, por favor, Ezra. Não tem de ser...
- Esta é a minha última oportunidade para ser o herói, humanazinha. - fez um sorriso triste e me levou para lá da porta. Deixou-me lá e retornou. Olhou-me uma última vez, com pesar e fechou a abertura.
Sentia-me como se estivesse no inferno.

Entre Anjos e DemôniosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora