O Vigia Barnabé

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A menina caminhou cerca de três quilômetros depois da porteira da fazenda, até chegar à sombra da velha árvore. Jogou o rabo de cavalo trançado para trás e subiu no teto do carro abandonado, já deteriorado pela chuva e pelos ladrões. Foi seguida pela fiel companheira, Canjica, uma vira-lata toda branca de aproximadamente três anos.

Não era a idade real da cachorrinha, mas Maria Júlia fazia esse cálculo levando em consideração o dia em que a encontrou, perambulando pela estrada que liga a fazenda até a Rodovia Juscelino Kubitschek.

As duas aguardavam a ronda do Vigia Barnabé, como era conhecido pelas redondezas. O tal Barnabé era um gigantesco Robô Vigilante, com o número de série BR-NB3. Existiam no mundo cerca de duzentos iguais a ele. Ainda era um número muito baixo, mas as Indústrias Asima nunca pararam de produzir os titãs, desde a longa perturbação de Júpiter, quando os Destruidores começaram a chegar, um atrás do outro.

Maria Júlia já tinha escutado falar de modelos marítimos patrulhando os oceanos, mas duvidava que qualquer um fosse mais majestoso que Barnabé e seus 735 metros de altura, de passadas largas, movimentos firmes e olhar atento a alta atmosfera. Em suas mãos trazia sempre o grande canhão acelerador linear magnético, que o povo gostava de chamar de "trabuco".

Canjica deu um latido, alertando a menina de que em breve o gigante apareceria cruzando toda a plantação de milho. A vira-lata conseguia ouvir o ranger das descomunais engrenagens e os apitos dos pistões a quilômetros de distância. Muito antes que a menina pudesse sentir os primeiros tremores de terra.

Maria cerrou os olhos e conseguiu perceber a coluna de fumaça que se erguia no horizonte. Era Barnabé levantando uma nuvem de poeira, pisada por pisada. E a cada passo, o enorme homem de metal avançava centenas de metros em direção ao milharal.

Era sempre muito rápido. Barnabé caminhava numa velocidade suficiente para o espetáculo não demorar mais que um ou dois minutos, e já sumia no horizonte oposto. Mas não aquele dia.

Barnabé parou de repente. Levantou o "trabuco" a altura do tórax e ficou imóvel, como se aguardasse algum sinal ou comando. As duas espectadoras nunca tinham visto aquilo, mas a menina sabia o que significava.

Soaram as sirenes espalhadas pelo corpo do robô, avisando que o disparo seria iminente. Prontamente Barnabé engatilhou o "trabuco" e apoiou em um dos ombros, apontando a arma em direção a um ponto brilhante no céu.

Maria Júlia e Canjica pularam do teto do carro e se esconderam atrás da lataria. A menina colocou a cachorra entre as pernas e tentou abafar as orelhas da vira-lata com os joelhos, enquanto tampava os próprios ouvidos com as mãos.

Certa vez estava lambendo uma forma de bolo na varanda quando ouviu um estrondo que trincou várias janelas da casa. Disseram que foi um tiro de Barnabé, dado a quatro cidades de distância. Estava morrendo de medo de ficar surda com o barulho e nunca mais poder ouvir o canto dos pássaros ou as histórias do vovô.

As sirenes cessaram, e uma onda de choque atingiu toda a plantação de milho, aplainando um enorme círculo em volta do gigante. O ar comprimido atingiu em cheio o carro e a velha árvore, arrancando praticamente todos os galhos e folhagem. A carroceria rodopiou pelo ar até cair dezenas de metros adiante.

A pequena Maria Júlia abriu os olhos, mas a visão estava turva e avermelhada. Seu peito doeu como se tivesse levado um coice do Arrancada, o corcel mais bravo da fazenda. Sentiu um gosto de ferro na boca, que lembrou muito a corrente do balanço pendurado no celeiro. Seu rosto estava repleto de grama, terra e sangue.

Tentou levar as mãos à face para limpá-la, mas não conseguiu. Seus braços agora terminavam um pouco antes dos cotovelos. Sua perna direita não estava mais onde deveria, e seu joelho esquerdo agora dobrava igual ao do galo Zazá.

A menina gritou por Canjica, mas não ouviu nenhum latido como resposta. Olhou para o céu e observou um grande clarão acima das nuvens. Era o imenso asteroide sendo pulverizado pelo projétil de Barnabé. Então tudo escureceu e se acalmou.


Seis meses depois, Barnabé patrulhava novamente a localidade quando registrou através da câmera para espectro de luz visível, que a velha e guerreira árvore voltava a florescer. Consultou o calendário do Sistema Operacional e verificou que estavam entrando na primavera.

Ele não fora programado para sentir remorso, mas fez questão de simular o que teria acontecido caso o asteroide adentrasse a atmosfera e colidisse com o solo. Os danos atingiriam escala global e o número de mortes somaria muito mais que apenas dois bits. Por suas leis intrínsecas, entendia que apenas um bit já seria o suficiente para abrir mão de sua própria integridade física, mas aquela situação exigiu outras decisões.

A máquina pesando centenas de toneladas ajoelhou-se próxima a árvore e com uma precisão cirúrgica, utilizou o conjunto de pinças que equipavam a ponta de um dos seus enormes dedos, para retirar uma linda flor amarela, a qual julgara a mais perfeita devido a simetria das pétalas e os padrões de contrastes exibidos pela câmera de luz ultra-violeta.

Ativou suas antenas de comunicação e enviou um sinal de saudação para uma certa frequência que já estava indexada entre as mais importantes. A mensagem de confirmação chegou imediatamente.

Espalmou a mão de tamanho colossal pelo terreno, enquanto uma nuvem de fumaça se erguia pela estrada de terra que levava até a fazenda. O conjunto de pernas cibernéticas só parou de correr quando Maria Júlia calculou que daquela distância já conseguiria saltar até a palma de Barnabé.

O robô levou a minúscula flor até os cabelos da menina, e a prendeu delicadamente, como se fosse um ser humano manipulando células em um microscópio.

Levantou-se até a altura das nuvens mais baixas e colocou sua amiga repousada confortavelmente em seu ombro direito. Maria não tinha medo de altura, e embora soubesse que o gigante não a deixasse cair, segurou-se com firmeza utilizando seus dois  braços biônicos, fabricados pela Asima, mais fortes que os do Tião Marretada.

"Pronta?" - verificou Barnabé, através da comunicação neural.

"Acho que sim."

O vigia esticou o braço para uma direção aleatória e um diminuto disco de polímero foi disparado por um mecanismo no punho. Imediatamente algo rompeu a barreira do som e rasgou a atmosfera deixando um rastro de vapor condensado. Abocanhou o disco muito antes que ele pudesse tocar o chão.

A trilha branca subiu, desenhando um arco no céu, e terminou bem ao lado da menina.

"Muito bem! Muito bem!" - festejou Maria Júlia, acariciando a cabeça da vira-lata e bagunçando as orelhas parabólicas pra lá e pra cá.

Canjica flutuava com seus quatro propulsores de plasma, vibrando sua antena omnidirecional para demonstrar alegria. Reproduziu um latido e acabou ganhando de sua dona um agrado sintético, sabor tungstênio.

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